Vinhos Ancestrais: Redescoberta de técnicas milenares na modernidade

Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia e pela padronização industrial, o universo do vinho testemunha um…

Vinhos Ancestrais, Redescoberta de técnicas milenares na modernidade

Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia e pela padronização industrial, o universo do vinho testemunha um fascinante movimento de retorno às origens. A busca por autenticidade e a valorização de processos menos intervencionistas têm catapultado os chamados vinhos ancestrais para o centro das atenções de enófilos e produtores. 

Este fenômeno não se trata de uma simples moda, mas sim de um atavismo enológico, no qual técnicas de vinificação que remontam a milênios ressurgem, combinando a sabedoria do passado com o conhecimento científico da modernidade.

O vinho, cuja história se confunde com a da própria civilização humana, com evidências de produção que datam de mais de 8.000 anos na Geórgia, sempre foi um produto da natureza e da intervenção humana. 

Ao longo dos séculos, a busca por estabilidade, previsibilidade e volume levou a uma crescente industrialização, com o uso de leveduras selecionadas, correções de acidez e aditivos. Contudo, a redescoberta de métodos que priorizam a expressão pura do terroir e o mínimo de manipulação vem redefinindo o conceito de vinho de qualidade.

Este artigo se aprofunda na essência dos vinhos ancestrais, explorando suas técnicas, suas distinções em relação a outras categorias e o impacto de sua crescente popularidade no cenário vitivinícola global e brasileiro.

O que são vinhos ancestrais? 

O termo vinho ancestral refere-se a vinhos elaborados a partir de técnicas de vinificação de amplo uso nos primórdios da viticultura e que, após um período de esquecimento ou marginalização pela indústria moderna, estão novamente aparecendo. A essência do vinho ancestral reside na simplicidade do processo e na mínima intervenção tecnológica.

Diferentemente de uma classificação que se baseia primariamente na agricultura (como os orgânicos) ou então em uma filosofia de adega (como os naturais), o ancestral foca na técnica. 

Ele é um vinho que busca replicar as condições e os recipientes de produção de eras passadas. Isso inclui o uso de recipientes inertes como as ânforas de argila, a vinificação de uvas brancas com as cascas (resultando nos orange wines) e métodos de espumantização que prescindem de aditivos externos.

Diferença entre vinhos ancestrais, naturais e orgânicos

É comum que os termos “ancestral”, “natural” e “orgânico” apareçam de forma intercambiável, mas eles representam focos distintos, embora frequentemente complementares, na produção de vinho.

A tabela a seguir resume o que é cada um desses vinhos e o que os diferencia:

CATEGORIAFOCO PRINCIPALAGRICULTURAINTERVENÇÃO NA ADEGAEXEMPLO DE TÉCNICA ANCESTRAL
OrgânicoSustentabilidade no vinhedo (certificação).Sem agrotóxicos ou fertilizantes sintéticos.Permite aditivos e manipulações (leveduras selecionadas, sulfitos em limites).Não se aplica diretamente.
NaturalMínima intervenção (filosofia de adega).Geralmente orgânica ou biodinâmica.Fermentação espontânea (leveduras selvagens), sem correção de acidez, sem filtração/clarificação. Sulfitos zero ou muito baixos.Pode ser um vinho ancestral (por exemplo: um vinho de ânfora sem sulfitos).
AncestralResgate de técnicas milenares (método de produção).Variável (pode ser orgânica, biodinâmica ou convencional).Foco em recipientes e processos históricos (ânforas, pisa a pé, Field Blend).Pét-Nat (Método Ancestral), Vinho de Ânfora.

Enquanto o vinho orgânico se preocupa com o que não entra no vinhedo (pesticidas e fertilizantes químicos), e o natural com o que não é adicionado na adega (leveduras, sulfitos, aditivos), o ancestral se define pelo como o vinho é feito, utilizando métodos que precedem a tecnologia moderna. 

Um vinho pode ser, e muitas vezes é, simultaneamente ancestral, natural e orgânico, mas o rótulo “ancestral” destaca o método histórico de sua criação.

Técnicas milenares que voltaram no presente

A redescoberta dos vinhos ancestrais trouxe à tona uma série de técnicas que estavam à margem da produção em grande escala. Essas práticas conferem características sensoriais únicas, bem como resgatam a história e a cultura de regiões vinícolas.

Ânforas e Talhas: A Fermentação em Argila

O uso de recipientes de argila para fermentação e armazenamento é, talvez, a técnica ancestral mais emblemática. 

Na Geórgia, o berço da viticultura, os Qvevri (grandes ânforas enterradas) são utilizados há milênios, sendo reconhecidos pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. 

Em Portugal, a tradição das Talhas (ânforas não enterradas) no Alentejo nunca se perdeu totalmente, e na Itália, as Tinajas são o equivalente.

A argila é porosa, permitindo assim uma micro-oxigenação controlada, semelhante à madeira, mas sem a cessão de aromas e sabores. Isso confere ao vinho uma textura singular e taninos mais suaves, resultando dessa forma em uma pureza de fruta e uma longevidade notáveis.

Pisa a Pé

A tradição de prensar as uvas com os pés em grandes tanques abertos, chamados lagares, remonta ao início da vinificação. 

Embora pareça rudimentar, a pisa a pé é uma técnica de extração suave e eficaz. A pressão humana evita o rompimento das sementes, o que liberaria taninos amargos e indesejáveis.

Essa prática sobreviveu de forma ininterrupta em regiões como o Douro, em Portugal, para a produção do Vinho do Porto, e hoje tem resgate por produtores de vinhos de mesa que buscam essa extração mais delicada e o componente filosófico da interação direta com a matéria-prima.

Field Blend: A Mistura do Campo

O Field Blend, ou “mistura do campo”, é a prática de plantar diferentes variedades de uvas no mesmo vinhedo e colhê-las e vinificá-las juntas. 

Nos primórdios da viticultura, essa era a regra. Isso pois garantia uma colheita mais estável e complexa, compensando as variações de maturação e performance de cada casta.

Embora a viticultura moderna tenha favorecido o plantio e a vinificação separados por casta (varietais), o Field Blend está sendo revalorizado por sua capacidade de produzir vinhos de complexidade e equilíbrio inatingíveis por blends convencionais, nos quais os componentes são misturados apenas no final.

Vinhos Laranjas (Orange Wines)

Os Orange Wines são vinhos brancos que passam por um período de maceração com as cascas, técnica tipicamente reservada aos tintos. 

Essa prática, que também tem suas raízes na Geórgia, confere ao vinho uma cor âmbar intensa (daí o nome “laranja”), taninos, maior corpo e uma complexidade aromática que lembra frutas secas, nozes e especiarias. 

Eles representam um resgate da ancestralidade, desafiando a noção moderna de que vinhos brancos devem ser sempre límpidos e sem contato com as cascas.

Método Ancestral (Pét-Nat)

O Método Ancestral é a forma mais antiga de produzir vinhos espumantes. Conhecido popularmente como Pét-Nat (pétillant naturel), ele consiste em engarrafar o vinho antes que a primeira fermentação esteja completa. O açúcar e as leveduras naturais da uva terminam o processo na garrafa, criando o gás carbônico. 

A ausência de adição de licor de tiragem ou de expedição (práticas do Método Tradicional/Champenoise) resulta em vinhos geralmente mais rústicos, com turbidez natural (devido aos sedimentos de levedura) e borbulhas mais suaves.

Por que os vinhos ancestrais estão em alta? 

O ressurgimento dos vinhos ancestrais é um reflexo de tendências socioculturais e de uma evolução na percepção de qualidade por parte do consumidor.

Listamos aqui alguns fatores que ajudam a entender por que essa tendência vem crescendo em popularidade:

Busca por Autenticidade e História

Em um mercado saturado por produtos padronizados, o consumidor busca narrativas e produtos com alma. Os vinhos ancestrais oferecem uma conexão direta com a história e a tradição, valorizando assim o trabalho artesanal e a identidade de um terroir específico.

Transparência e Mínima Intervenção

A filosofia de “menos é mais” na adega é central para os vinhos naturais e se alinha perfeitamente com os ancestrais. Ela atrai um público que valoriza a transparência e a ausência de aditivos químicos. Muitos consumidores veem esses vinhos como uma expressão mais pura e honesta da uva.

Diversidade Sensorial

Os métodos ancestrais, como a maceração prolongada em ânforas ou então a produção de Pét-Nats, criam perfis sensoriais radicalmente diferentes dos vinhos convencionais. Os Orange Wines, por exemplo, oferecem taninos em um vinho branco, expandindo as possibilidades de harmonização e o prazer da descoberta.

Sustentabilidade e Regeneração

Muitas vezes, o resgate de técnicas ancestrais tem associação a práticas de viticultura orgânica ou regenerativa. O uso de ânforas, por exemplo, é uma alternativa sustentável à madeira, que exige manejo florestal. Produtores como a Era dos Ventos no Brasil demonstram que o resgate de castas antigas e a valorização do ecossistema local são parte integrante desse movimento.

Vinhos ancestrais ao redor do mundo 

A prática ancestral não se limita a uma única região, mas se manifesta em diversos pontos do globo, cada um com sua peculiaridade histórica.

Rótulos premiados e de destaque

O reconhecimento dos vinhos ancestrais passa pela valorização de regiões que mantiveram essas tradições vivas e de produtores que as resgataram com excelência.

  • Geórgia (Qvevri Wines): A Geórgia é o epicentro da vinificação em ânforas (Qvevri). Produtores como Pheasant’s Tears e Château Mukhrani são referências mundiais, exportando vinhos brancos e tintos de ânfora que demonstram a profundidade, a textura e a pureza de fruta que essa técnica confere.
  • Portugal (Vinho de Talha e Vinho do Porto): O Alentejo é o lar dos Vinhos de Talha, onde a tradição de fermentar e armazenar o vinho em ânforas de argila (talhas) nunca cessou. No Douro, o Vinho do Porto é um exemplo de produto de destaque que manteve a pisa a pé e o Field Blend como práticas centrais em muitos dos seus melhores rótulos.
  • Itália (Orange Wines e Botti): Regiões como Friuli-Venezia Giulia e Eslovênia (Goriska Brda) são famosas pelos Orange Wines, com produtores como Gravner e Radikon sendo pioneiros no resgate da maceração de brancos. Além disso, o uso de grandes tonéis de carvalho (botti ou foudres) é uma tradição ancestral mantida em regiões como o Piemonte.

Existe produção de vinhos ancestrais no Brasil?

Sim, a produção de vinhos ancestrais no Brasil é uma realidade crescente e de grande destaque. É impulsionada por produtores que buscam a valorização do terroir nacional e o resgate de castas e métodos históricos.

A vinícola Era dos Ventos, na Serra Gaúcha, é um dos exemplos mais notáveis. O enólogo Luís Henrique Zanini se dedica ao resgate da uva Peverella, uma casta branca quase extinta que se adaptou bem ao clima local. 

O trabalho da Era dos Ventos e de outros produtores brasileiros demonstra que o movimento ancestral é uma forma de regeneração da viticultura, valorizando a biodiversidade e o ecossistema local, bem como a história vitivinícola do país.

Degustando vinhos ancestrais 

Os vinhos ancestrais oferecem uma paleta sensorial rica e distinta, que desafia as expectativas do bebedor acostumado aos vinhos convencionais. 

Diferenças Sensoriais

Para entender melhor as características organolépticas de cada vinho, preparamos uma tabela:

TIPO ANCESTRALCARACTERÍSTICAS VISUAISCARACTERÍSTICAS OLFATIVAS E GUSTATIVASTEXTURA E CORPO
Vinho LaranjaCor âmbar/cobre, levemente turvo.Aromas complexos de frutas secas, nozes, mel, chá preto e especiarias.Corpo robusto, presença de taninos (único em vinhos brancos).
Vinho de ÂnforaCor límpida, mas por vezes mais profunda.Pureza de fruta, mineralidade acentuada, ausência de notas de madeira.Textura sedosa e macia, taninos integrados (em tintos e laranjas).
Pét-Nat (Método Ancestral)Turvo (devido aos sedimentos), borbulhas suaves e irregulares.Notas de levedura, pão, maçã verde e acidez vibrante.Leve e refrescante, com efervescência sutil.

Harmonizações

A complexidade e a textura dos vinhos ancestrais os tornam extremamente versáteis para a gastronomia.

  • Vinho Laranja: Devido à presença de taninos e ao corpo, o Orange Wine é um dos melhores vinhos para harmonizar com pratos difíceis. Como por exemplo a culinária asiática (curry, pratos tailandeses picantes), queijos curados e carnes brancas mais saborosas (pato, porco). Os taninos ajudam a cortar a gordura e a proteína dos pratos.
  • Vinho de Ânfora: A pureza e a mineralidade do vinho de ânfora pedem pratos que valorizem o sabor primário. Harmonizam perfeitamente com peixes grelhados, massas com molhos leves à base de vegetais e a culinária mediterrânea em geral.
  • Pét-Nat: Sua acidez vibrante e leveza o tornam um aperitivo ideal. É excelente com entradas leves, finger foods, saladas e pratos que exijam um corte de gordura, como embutidos e queijos frescos.

Conclusão 

A redescoberta dos vinhos ancestrais é um movimento que transcende a simples nostalgia. É uma resposta técnica e filosófica à padronização da indústria, um resgate da memória enológica que valoriza a autenticidade e a mínima intervenção.

O sucesso global desse movimento, que se reflete em rótulos de destaque na Geórgia, Portugal e, notavelmente, no Brasil, aponta para um futuro em que a tecnologia e a tradição não são antagônicas, mas complementares. O conhecimento moderno permite que os produtores compreendam e aprimorem essas técnicas antigas, garantindo assim a qualidade e a estabilidade que o consumidor exige.

Os vinhos ancestrais não são apenas uma bebida; são um convite à reflexão sobre a história, a cultura e a relação do homem com a natureza. Eles provam que, muitas vezes, a inovação mais profunda reside na coragem de olhar para trás e de revalorizar a sabedoria dos nossos antepassados.

E então, qual desses que mais despertou a sua curiosidade? Saúde!

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