Vinhos sem uvas: Podemos mesmo chamá-los assim?
A palavra “vinho” evoca, quase que instintivamente, a imagem de cachos de uvas, vinhedos extensos e o complexo processo…

A palavra “vinho” evoca, quase que instintivamente, a imagem de cachos de uvas, vinhedos extensos e o complexo processo de transformação do mosto em uma bebida que apreciamos há milênios. Tradicionalmente, e em muitas legislações ao redor do mundo, o vinho é, por definição, o produto obtido exclusivamente pela fermentação alcoólica, total ou parcial, de uvas frescas, esmagadas ou não, ou de mosto de uvas. Contudo, nas últimas décadas, vimos um aumento de interesse nos “vinhos sem uvas”.
De frutas exóticas a flores e até mesmo mel, a criatividade humana explora diferentes fontes de açúcares fermentáveis para produzir bebidas alcoólicas que, por vezes, emprestam o nome “vinho”.
Essa prática levanta uma questão pertinente e controversa: afinal, podemos chamar de vinho uma bebida alcoólica fermentada à base de matérias-primas que não sejam uvas? Neste artigo, vamos mergulhar nesse debate, explorando os “vinhos sem uvas”, e a legitimidade de sua nomenclatura.
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Você sabia que existem vinhos que não vieram das uvas?
Embora o vinho tenha ligação histórica à uva, a prática de fermentar outras frutas e ingredientes para criar bebidas alcoólicas com características semelhantes ao vinho não é nova. Em diversos países e culturas, há registros antigos e modernos de bebidas fermentadas à base de frutas como maçã, abacaxi, cereja, jabuticaba, pêssego, morango, hibisco e até arroz. Qualquer fruta, ou mesmo outras fontes vegetais ricas em açúcares ou então amidos conversíveis em açúcares, pode, teoricamente, passar pela fermentação e produzir uma bebida alcoólica.
Esses produtos geralmente recebem nomes específicos, como “vinho de cereja” ou “vinho de arroz”, embora, tecnicamente, muitas legislações de diferentes países não os considerem vinhos de fato, mas sim bebidas fermentadas de frutas. Existem, inclusive, países com restrições maiores ao uso do termo “vinho”. A Alemanha, por exemplo, permite apenas que os fermentados de uvas da espécie Vitis vinifera levem o nome de vinho. Fermentados de uvas americanas ou híbridas não podem usar a palavra em seus rótulos.
Ainda assim, utiliza-se o nome “vinho” popularmente – e amplamente – para denominar essas bebidas fermentadas de outros ingredientes.
Os principais vinhos sem uvas
Os “vinhos” sem uva são elaborados a partir de ingredientes diversos, como jabuticaba, maçã, abacaxi, pera, frutas vermelhas, e até mesmo flores. Entre os mais populares vinhos sem uvas, destacam-se:
- Vinho de maçã (cidra): embora a cidra seja frequentemente categorizada à parte, especialmente quando carbonatada e com menor teor alcoólico, versões mais fortes e complexas são por vezes denominadas “vinho de maçã”. Com produção a partir da fermentação do suco de maçã, suas características variam conforme as variedades da fruta, o processo de fermentação e o envelhecimento. Pode ser seca ou doce, tranquila ou espumante, e apresentar uma acidez marcante.
- Vinho de jabuticaba: tradicional em muitas áreas do Brasil, o “vinho de jabuticaba” apresenta cor intensa e sabor agridoce. Dependendo da região, outras frutas nativas fazem o papel principal nessas bebidas, como vinho de umbu ou vinho de caju.
- Vinho de pera (perry ou poiré): similar à cidra, o perry tem preparo na fermentação do sumo de peras, especialmente variedades específicas para essa finalidade. Tende a ser mais delicado e, por vezes, mais doce que a cidra, com aromas florais e frutados sutis.
- Vinho de mel (hidromel): uma das bebidas alcoólicas mais antigas do mundo, a produção do hidromel se dá pela fermentação de uma mistura de mel e água, podendo ter enriquecimento com frutas, especiarias ou então ervas. Sua doçura, teor alcoólico e perfil aromático podem variar desde versões leves e secas até exemplares mais robustos e licorosos.
- Vinhos de flores: menos comuns, mas igualmente intrigantes, são os “vinhos” feitos a partir da fermentação de flores, como hibisco, sabugueiro e dente-de-leão. Estes tendem a ter perfis aromáticos delicados e bastante únicos.
Chamá-los de vinhos realmente é certo?
A discussão sobre o uso do termo “vinho” em produtos que não contêm uva não é apenas cultural – ela também é legal e normativa.
De acordo com a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), define-se o vinho como “a bebida resultante exclusivamente da fermentação alcoólica total ou parcial de uvas frescas, esmagadas ou não, ou de mosto de uva”. Diversos países adotam essa definição, inclusive o Brasil, onde o Decreto nº 8.198/2014, que regulamenta a produção vitivinícola, também restringe o uso do termo “vinho” a bebidas que derivam da uva.
Países da União Europeia, como Itália, França e Espanha, líderes mundiais na produção mundial de vinhos, são exemplos dessa restrição. Em alguns casos, pode ser mais rígido, como na Alemanha, onde somente fermentados de uvas da espécie Vitis vinifera podem ser vinho.
Na Austrália, “vinho” significa o produto da fermentação exclusiva de uvas. Contudo, os fermentados de outras origens podem usar o termo “vinho”, sempre acompanhando o nome da fruta. Por exemplo, um fermentado de morango pode ser chamado de “vinho de morango”. No Canadá, a legislação é semelhante, permitindo-se o uso do termo “vinho” desde que seguido do ingrediente.
Já nos Estados Unidos, permite-se utilizar o termo “vinho” de forma bem mais flexível para qualquer fermentado à base de frutas ou outros ingredientes. Legalmente, um produtor pode elaborar um fermentado de cerejas, por exemplo, e comercializá-lo como vinho. Não há a obrigatoriedade de especificar a origem, embora muitos produtores optem pela clareza.
Contudo, existe uma zona cinzenta. No mercado, especialmente em vendas diretas ou informais, o termo “vinho” é utilizado de maneira mais ampla, o que pode confundir o consumidor. Usar o termo “vinho” indiscriminadamente pode levar a expectativas equivocadas de características sensoriais típicas do vinho de uva ao adquirir um fermentado de outra origem.
E os vinhos de laboratório?
Se os vinhos de frutas já levantam debates, os “vinhos de laboratório” vão ainda mais longe. Conhecidos como vinhos sintéticos, são bebidas elaboradas com base em engenharia molecular e biotecnologia.
Em vez de usar frutas fermentadas, esses produtores isolam compostos químicos responsáveis por aroma, sabor, acidez, corpo e cor do vinho tradicional, e os reproduzem em laboratório, combinando-os de forma precisa em uma matriz líquida que simula a bebida original.
Um caso notório foi o da AVA Winery, startup americana que, em 2016, chamou atenção ao anunciar a produção de vinhos sintéticos – bebidas de produção em laboratório sem uso de uvas, fermentação ou leveduras tradicionais. A empresa pautou seu trabalho na análise molecular detalhada de vinhos famosos, como o Chardonnay Chateau Montelena de 1973, buscando replicar, de forma bioidêntica, o perfil químico e sensorial dessas bebidas.
O processo envolvia a combinação exata de moléculas que conferem os aromas, sabores e características do vinho, transformando a produção em um desafio químico avançado, mas sem necessidade de cultivo ou colheita de uvas.
Na época, a proposta da startup representava uma potencial revolução, prometendo democratizar o acesso a vinhos de alta qualidade a custos menores e com menor impacto ambiental. No entanto, apesar do entusiasmo inicial, essa tecnologia não se consolidou amplamente no mercado até o momento.
Hoje, o interesse do setor vitivinícola global em termos tecnológicos está mais voltado ao desenvolvimento de variedades de uvas mais resistentes e à adoção de práticas sustentáveis, como manejo de vinhedos orgânicos, além da criação de vinhos com menor teor alcoólico.
Conclusão
A discussão sobre os “vinhos sem uvas” – sejam eles de outras frutas, flores ou moléculas sintetizadas em laboratório – não é apenas semântica. Trata-se de uma discussão sobre identidade, tradição, cultura e legislação.
Em termos legais, o consenso internacional é restringir a palavra “vinho” ao produto da uva, para proteger o consumidor e preservar a tradição milenar. Culturalmente, porém, a definição permanece aberta a reinterpretações, sobretudo em mercados e comunidades que produzem bebidas fermentadas típicas há gerações, usando o termo “vinho” seguido do ingrediente principal.
No fim das contas, independentemente da nomenclatura, o que se busca em qualquer bebida é a qualidade e o prazer sensorial. Seja um clássico vinho de uva envelhecido em carvalho ou um fermentado de jabuticaba, a apreciação reside, sobretudo, na experiência que ela proporciona ao consumidor.